domingo, setembro 11, 2005

O ser (parte 1)......

O dia tinha sido longo, mas ainda não tinha terminado, disso o recordavam as pequenas gotas de suor que sentia a sair dos seus poros. Olhou para o que era o jantar e veio-lhe à memória aquele terrível dia:
Mais uma vez os seus esforços tinham sido em vão. Mas a esperança.......A esperança que este ano é que era. Que este ano seria possível. Este ano iria conseguir adiar por algumas semanas, por um mês....E depois....se a chuva e o frio entretanto chegassem....quem sabe? Talvez conseguisse. Talvez a tenebrosa transformação não ocorresse.....talvez. Mas no fundo.....no fundo sabia. Sabia que apenas estava a adiar o inevitável.
- É HOJE. – disse-lhe ela, mal acordou.
- É hoje, o quê? – perguntou-lhe ele, estremecendo quando viu o seu olhar..... - Já está. – pensou – A transformação está feita.
Sentiu o medo a apoderar-se lentamente do seu corpo. Sentiu as forças a abandoná-lo, obrigando-o a tombar na cama. Lágrimas de raiva e frustração eclodiram toldando-lhe o olhar. Pensamentos negros invadiram-no. Ela nada notou, o ser já tinha tomado o controlo do corpo que ele tanto amava. Já se estava a dirigir para fora do quarto, repetindo a tenebrosa frase: É HOJE.
Pouco depois começou-se a ouvir por toda a casa um horrível barulho: Móveis a serem arrastados; objectos a caírem com estrondo no chão; sacos de plástico e papéis a serem mexidos.....O caos tinha começado.
Não podia continuar deitado. Tinha que reagir. Afinal não estava só....A filha.....a pobre filha. Tinha que a proteger. Ordenou ao seu corpo que se levantasse. Ouviu pequenos passos de corrida a virem na sua direcção e enxugou as lágrimas, uma figura frágil e assustada entrou no seu quarto. Tentou tranquilizá-la com um sorriso. Tinha que ser forte por ela.
- O que é que a mãe está a fazer? – perguntou-lhe com a voz assustada.
- Não é nada de especial filha, não te preocupes. A mãe hoje vai estar um pouco diferente dos outros dias, nada mais......Não te preocupes. O pai está aqui. – respondeu-lhe enquanto a embalava nos seus braços.
O barulho não parava, passava de divisão para divisão. Novos sons foram surgindo: Fortes suspiros; palavras terríveis ditas por quem normalmente só diz gaita quando corta totalmente um dedo; nomes horríveis dirigidos às duas pobres criaturas, que procuravam conforto um no outro e que estremeciam sempre que ouviam aquela voz cavernosa, do ser que agora habitava o corpo da esposa e mãe.
Todas as saídas da casa pareciam bloqueadas. Mesas....cadeiras....móveis....brinquedos. Tudo se encontrava espalhado pela casa. O caos estava instalado. Mas....uma pequena janela estava desbloqueada. Através dela conseguiram passar para o jardim. Aí ficaram grande parte do dia juntos, num pequeno canto do mesmo. Ainda pensaram em sair para a rua, mas.....o medo tinha-os paralisado.
O dia passou demasiado devagar, quando os raios solares começaram a perder a força, arriscaram....resolveram entrar. O caos estava a dar lugar a uma nova e estranha ordem, mas ainda não tinha terminado. Deram de caras com o ser.
- Preciso de vocês. – disse com a sua voz cavernosa.
Nada podiam fazer. O ser agarrou a mão da filha arrastando-a para a divisão conhecida como o quarto de brincar. Ele ali ficou, impotente perante aquela terrível força. – A TORTURA... – pensou – ESTÁ NA HORA DA TORTURA....AAAAAHHHHH.
- E tu deixa de ficar aí especado a olhar para nós e vai para o quarto de hóspedes. Tenho lá uma surpresa para ti......HAHAHAHAHAHA – disse-lhe o ser, rindo-se maquiavelicamente, antes de dobrar a esquina do quarto.

(continua.....)