segunda-feira, setembro 12, 2005

O ser (parte 2).....

Agora ali estavam, prestes a jantar. O ser estava a começar a dar sinais de fraqueza, em breve iria libertar aquele pobre corpo. Mas antes.....antes havia ainda o jantar.....o jantar.... Massa de cuscuz, misturada com atum, fiambre, cogumelos e courgettes…. A sua última tortura.
Quando o jantar terminou, o seu olhar voltou ao normal. O ser tinha partido. O seu corpo pertencia-lhe novamente. Nada do que se tinha passado, durante aquele terrível dia, estava na sua memória. O sorriso que a ilumina, voltou aos seus belos lábios.
- Então? Os meus amores comeram bem? – perguntou, enquanto ajudava a levantar a mesa. As luzes voltaram a ter o seu brilho normal, a névoa, que durante todo o dia tinha invadido a casa, dissipou-se completamente.
- Filha, vens comigo beber um chá? Deixamos o paizinho sossegado para ver se descansa um pouco as costas e se as hérnias lhe dão um pouco de paz.
Passado pouco tempo saíram de casa. O silêncio instalou-se. Suspiros de alívio começaram a sair mecanicamente de dentro de si…….tinha terminado. Olhou à sua volta. A ordem estava novamente instalada. Percorreu todas as divisões. Estavam diferentes. Móveis tinham passado de um local para outro, mesas tinham em cima novos e diferentes objectos, molduras de fotografias estavam agora espalhadas por ordem cronológica. Parecia uma nova casa. Reteve-se algum tempo no quarto de brincar da filha. Estremeceu quando se recordou na tortura que, ainda há algumas horas, ela ali tinha sofrido:
“ Os telemóveis de brincar são aqui. As barbies são para ser arrumadas aqui. Não quero ver mais peças pequenas perdidas atrás de almofadas. Os jogos estão ordenados por idade, E ASSIM QUERO QUE FIQUEM. Todos estes brinquedos que só aqui estão a ocupar espaço vão ser dados. E NÃO QUERO CHORADEIRA.”
Também o quarto de hóspedes lhe trouxe amargas recordações. Olhou para o resultado da sua tortura ao mesmo tempo que massajava as costas, tentando dessa forma, obter algum alívio das dores que resultaram de todo aquele penoso trabalho. A um canto encontravam-se diversos objectos embrulhados em plásticos. Recordou-se do quanto sofreu para desmontar e embrulhar o antigo berço, as dores causadas pelo embrulhar do suporte de madeira antigamente utilizado como muda fraldas, a ginástica que teve que fazer para embrulhar o cavalo de madeira e uma outra série de objectos que o ser considerou como pertencentes ao sotão. Lágrimas voltaram aos seus olhos. Limpou-as ao mesmo tempo que afastava esses dolorosos pensamentos. Já tinha acabado, pensou, enquanto um suspiro profundo e incontrolável o libertou.
Foi para o quarto e deitou-se. Quando elas chegaram estava a ler. Ouviu-as a rir. Sorriu também. Já estava tudo esquecido....até ao próximo ano....afastou rapidamente este último pensamento e ficou a ouvi-las. Foi dar um beijo à filha e veio com a sua amada para a cama. Falaram, leram e tudo estava, finalmente, normal. Deu um último suspiro de alívio. Quando estava a apagar a luz, ela disse:
- Amanhã tens que levar tudo o que está embrulhado no quarto de hóspedes para o sotão. E amanhã é a vez de IR ARRUMAR A GARAGEM. HAHAHAHAHAHA.
- NÃO….. A GARAGEM NÃO…..A GARAGEM É MINHA…. MINHA……. NÃÃÃÃÃÃOOOOOOOOOO….
Acordou em suor. Olhou em volta e viu a claridade de um novo dia. Tinha sido um sonho. Nada mais do que um sonho. Deixou-se cair para trás sorrindo....um terrível sonho....apenas isso. Ela entrou no quarto vinda da casa de banho. Estava nua e a claridade batia-lhe por trás. Uma visão divinal. Ele esperou pelo beijo que sabia que ela lhe vinha dar. Apertou-a fortemente nos seus braços. Precisava de esquecer aquele terrível pesadelo.
- Então amor, o que se passa? – perguntou-lhe ela.
- Nada. Só quero estar um pouco assim contigo. Nada mais.
- Está bem. – disse-lhe ela, aninhando-se nele. – Sabes......Estou a pensar em fazer as minhas arrumações anuais hoje. O que dizes? HAHAHAHAHAHAHAHA.